CARTA À SOCIEDADE CIVIL E AO ESTADO BAIANO

Os territórios negros centrais ou periféricos da cidade de Salvador e várias cidades do interior baiano vêm registrando a intensificação do confronto armado, que envolve a disputa de poder e território entre facções criminosas rivais e a atuação das forças repressivas do Estado.

À histórica desigualdade social baiana e brasileira, que cresce neste estágio da sociedade racista, patriarcal e capitalista neoliberal, acresce também cada vez mais a violência sob o impacto da militarização pesada dos grupos criminosos locais, em aliança com as facções do eixo sudestino, importando um modo de agir caracterizado pela desocupação forçada de imóveis e até usando moradores como reféns.

Sabe-se o quão desafiador é o enfrentamento dessa problemática, mas não se pode esvaziar o debate e naturalizar a ideia de que o enfrentamento deva passar apenas pela esfera de uma repressão estatal a esses territórios e comunidades. O que se nota é um modelo operativo com ações características de uma guerra regular, que gera pânico e mortes nas comunidades negras. 

A manutenção dessa guerra não se restringe ao modelo de segurança pública adotado, mas sim ao conjunto de políticas genocidas que vão desde a eliminação física dos corpos e a desagregação dos territórios negros pela negação do direito à moradia digna, à saúde, à educação, ao transporte público de qualidade, ao trabalho e renda dentre outros direitos. 

Assim, a alegada razão para o aumento da violência nesses bairros tem sido o combate à criminalidade, a militarização das comunidades pelas facções e, de modo mais geral, a chamada “guerra às drogas” e ao narcotráfico. Se as drogas estão em todos os espaços, inclusive nos bairros de classe média e alta, porque somente os territórios negros são os alvos dessas operações repressivas, que somaram 380 mortes, entre janeiro e novembro de 2023?

O aumento da repressão não é uma exclusividade dos territórios urbanos. Nas comunidades rurais, a violência se intensifica com a incidência das milícias rurais e da pistolagem, principalmente nos territórios tradicionais (quilombolas, fundo e fecho de pasto, indígenas, pesqueiras/marisqueiras etc.), para onde avança a fronteira agrícola.  Nesses espaços, em geral, a violência ocorre em virtude da omissão do Estado em processos de regularização fundiária, inclusive onde há fortes indícios de grilagem de terras devolutas. Assim prosseguem as mortes e violações de direitos, que afetam famílias vivendo há gerações nesses territórios, cada vez mais cobiçados pelo agronegócio, mineração, especulação imobiliária e grandes empreendimentos.

Essa política de segurança, ineficaz e ineficiente, não reduz os índices de criminalidade e a insegurança da população só aumenta. Os resultados têm sido mais confrontos armados com perdas de vidas negras, prejuízos à economia dos bairros populares, adoecimento psíquico, desespero e pânico para a comunidade, principalmente as mães que perderam ou que temem perder os seus filhos.

Segundo o Anuário de Brasileiro de Segurança Pública (2023), a Bahia ocupou o primeiro lugar no ranking de letalidade policial em 2022, respondendo por 22,77% da letalidade das ocorrências nacionais, quando apenas uma vítima das 299 pessoas mortas pela polícia era branca,  conforme o estudo (“Pele Alvo: a cor que a polícia apaga”, 2022). Até quando o racismo estará presente nas práticas de “segurança pública”?

O Estado brasileiro não pode apostar na violência como estratégia de segurança pública, e negligenciar as demandas populares e a necessidade de reparação histórica aos povos. A universalização da educação pública de qualidade; o reconhecimento, demarcação e regularização dos territórios camponeses, indígenas, quilombolas e extrativistas; a presença efetiva com unidades de saúde e atendimento psicossocial adequados às necessidades de cada grupo; a capacitação técnico-profissional e estímulos creditícios amplos à economia social comunitária; equipamentos recreativos e culturais, com apoio à produção e valorização das iniciativas locais, dentre outras políticas públicas são condições fundamentais para possibilitar a inserção desses territórios e povos aos espaços de cidadania. 

Neste final de ano, quando vivenciamos de maneira mais intensa a solidariedade, convocamos a sociedade a compreender a urgência e a necessidade de apoiar esta pauta. Para além da responsabilização do Estado, como podemos nos solidarizar com as famílias e comunidades que sofrem as consequências dessa guerra?


                                                                                               Salvador, 11 de dezembro de 2023.


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