Segue o depoimento de Ahay Akili:
Em outubro de 2021, eu, mulher preta, moradora da cidade de Aparecida de Goiânia sofri várias violações de direitos e violências durante o pré-natal, que resultaram na perda precoce de minha filha Assata, ainda em meu “ventre livre”. Apesar de apresentar um pré-natal considerado como ‘‘exemplar’’, e manter cuidados com a saúde e a alimentação, durante uma queixa de insônia, foi insinuado por uma enfermeira que me acompanhava na UBS Parque das Nações, que o fato tratava-se de abstinência do uso de drogas. Essa afirmação, visivelmente preconceituosa, se deve a minha opção estética, assumidamente negra, com cabelos dreadlocks e com tatuagens.
Por trás da sentença racista e preconceituosa, na realidade, eu me encontrava em acompanhamento com psicanalista desde o início do trimestre em decorrência de um distúrbio relacionado à ansiedade.
Além disso, a enfermeira insistiu em práticas arriscadas, como indicação de massagem nos seios, ignorando vários protocolos que afirmam que tais atos podem aumentar o risco de parto prematuro.
Após a insinuação racista sobre a causa da minha insônia, formalizei uma denúncia no Conselho Regional de Enfermagem (COREN/GO) em 01/09/21, pela conduta racista e imprudência técnica da profissional de saúde.
Também me queixei várias vezes de dores de cabeça, ocorrência de corrimentos e infecção urinária nos 3 meses anteriores, sintomas que não foram devidamente investigados pelos profissionais que me atenderam.
Minha última consulta pré-natal foi no dia 20/10/21 na UBS Parque das Nações, a 8ª consulta de rotina, mesmo sendo 6 o número recomendado, o que demonstra mais uma vez o cuidado despendido em minha gestação. Na ocasião, relatei fortes dores de cabeça, náusea e vômito (sintomas persistentes à alguns dias), além de muitos edemas, entretanto, tudo foi considerado dentro da normalidade pela equipe médica.
Por volta de 11h, foi feita avaliação da altura uterina, compatível com a idade gestacional (33 semanas e 4 dias), apalpando a barriga dava pra perceber que minha criança já estava em posição cefálica (encaixada), o coração batia a 140 bpm, a enfermeira mostrou o bombeamento de sangue arterial e a pulsação do coração. Dois sons *nitidamente distintos* e vibrantes (eu estava tão emocionada que gravei para compartilhar com meus familiares). A enfermeira até disse “viu, que coração valente!”
Antes de sair do consultório, houve uma leve elevação da pressão arterial (para 130/90), também considerada dentro da normalidade pela equipe médica. Foi recomendado aferir a pressão regularmente e o receituário indicava remédios para náusea, PACO (codeína e paracetamol), e um pedido de ultrassom. Tomei a medicação para náusea após o almoço e me dirigi para a Clínica ULTRAMED - Garavelo para realizar a ultrassom às 14h. Durante o percurso sentia meu bebê se mexer, e ‘contrações de treinamento’. Chegando na clínica, que encontrava-se lotada, só consegui realizar o exame por volta das 15h20.
Durante o ultrassom, o médico informou que não estava identificando BCF (batimentos cardíacos fetais), afirmação confirmada por um outro médico chamado ao consultório. Mesmo eu relatando que havia acabado de escutar os batimentos cardíacos a poucas horas, e que havia inclusive feito uma gravação, o médico, sem escutar, afirmou que se tratava de bombeamento de sangue arterial e não batimentos do coração.
Nesse momento eu fiquei inquieta, extremamente nervosa, não sabia o que dizer, comecei a chorar muito, o Dr. disse ‘‘calma, se você não ficar quieta, não vamos ver mesmo’’.
A consulta foi encerrada e pediram para a recepcionista ligar para a minha mãe, e que me encaminhasse para a Maternidade Marlene Teixeira. Enquanto aguardava, completamente desesperada, ouvi do médico ‘‘fica tranquila, pode ser que seja o meu aparelho com defeito’’. Mesmo sendo uma emergência, não foi contactada uma ambulância, e só consegui chegar à maternidade com a chegada da minha, uma hora depois de Uber. Durante todo esse tempo, sentia contrações. Chegando na maternidade às 16h45, passei pela triagem e fui informada que naquele dia não tinha mais vaga para ultrassom, mas que seria atendida em caráter de exceção, sem laudo comprobatório. Duas médicas me atenderam e constataram o óbito fetal, pois não verificaram frequência cardíaca, nem sinais de cavalgamento, o que indicava que o óbito seria recente.
Na internação pediram exames para rastrear pré-eclâmpsia, avaliou TOTG (curva glicêmica), estavam normais, mas minha pressão teve um pico, que pode ter ocorrido diante do nervosismo em que eu me encontrava.
Durante a internação na maternidade Marlene Teixeira sofri sucessivas violências. Não recebi medicação para alívio da dor, o medicamento para indução do parto só veio ser aplicado horas depois e não estava sendo ministrado conforme a orientação médica. Fui deixada com fome e sede até o dia seguinte por volta das 10h da manhã, mesmo no prontuário estando escrito ‘‘dieta livre’’. Também foram violadas a Lei Federal 11.108/2005 que garante o direito à acompanhante, recomendado pela OMS mesmo em contexto pandêmico, e a Lei Estadual nº 21.078/2021 que garante o acesso à doula, só sendo permitidas após tensas discussões com a equipe de plantão.
Entre 1h quando começou a indução ao parto, e 16h20 quando dei à luz a minha bebê natimorta, perdi muito sangue, e continuei perdendo nos dias seguintes. Durante o procedimento do parto, tive meu pedido de analgesia negado, sob justificativa de que aquele hospital não fazia aplicação de anestesia em parto natural. O cordão umbilical foi pisado e descartado em lixo comum. Não foi permitido que o pai da nossa bebê pudesse vê-la. Tive retenção placentária, então fui encaminhada para o centro cirúrgico coberta com a minha própria toalha, pois segundo me disseram, não haviam camisolas ou lençóis limpos.
Quando entrei no centro cirúrgico o médico dizendo de forma muito grosseira “o que foi com você?” Eu respondi “minha filha morreu”, ele disse: “vamos levanta logo, eu não consigo te pegar no colo” e eu disse a ele que também não conseguia me levantar, mas ainda assim, me levantei sozinha com certa dificuldade e me deitei na maca.
Permaneci internada até o dia 24/10/21 recebendo transfusão de sangue, foram 5 bolsas no total, sem que fosse dada nenhuma explicação à minha família sobre a razão do procedimento. Não foi informada a causa mortis do bebê, nem o meu real estado de saúde. Foi negado o acesso ao prontuário médico, que também é um direito, mesmo com a presença de advogadas. Meus familiares foram tratados como agressivos, por exigirem informações à equipe de plantão.
Infelizmente, o que passei durante a gestação e óbito de Assata não é um caso isolado, mas um retrato do que acontece com muitas mulheres, em sua maioria negras, no sistema de saúde brasileiro, e que precisa ter a relevância necessária no contexto de luta por direitos e enfrentamento ao racismo obstétrico ao genocídio do povo negro. A maternidade Marlene Teixeira, especialmente, tem histórico de violência obstétrica, casos de fraturas em bebês, e até mesmo, recém-nascidos colocados em caixas de papelão, por falta de leitos .
Sinto que a morte da Assata seria completamente evitável, se meu pedido de socorro não fosse tido como capricho. O que levou a vida da minha filha foi uma situação de racismo obstétrico, é por que eu sou preta antes de tudo, por que minha filha era preta antes de tudo. Não me deram tiros, mas tiraram meu bebê de dentro do meu ventre e jogaram numa vala. Eu fiquei 3 dias sangrando, sem saber se tinham restos placentários no meu útero, me deixaram pra morrer, se estou viva é por milagre.