A origem dos Kaingang
A tradição dos Kaingang afirma que os primeiros da sua nação saíram do
solo; por isso têm cor de terra. Numa serra, não sei bem onde, no sudeste do estado
do Paraná, dizem eles que ainda hoje podem ser vistos os buracos pelos quais
subiram. Uma parte deles permaneceu subterrânea; essa parte se conserva até hoje
lá e a ela se vão reunir as almas dos que morrem, aqui em cima. Eles saíram em
dois grupos chefiados por dois irmãos, Kayrú e Kamé, sendo que aquele saiu
primeiro. Cada um já trouxe consigo um grupo de gente. Dizem que Kayrú e toda a
sua gente eram de corpo delgado, pés pequenos, ligeiros, tanto nos seus
movimentos como nas suas resoluções, cheios de iniciativa, mas de pouca
persistência. Kamé e seus companheiros, pelo contrário, eram de corpo grosso, pés
grandes, e vagarosos nos seus movimentos e resoluções.
A criação dos animais.
Como esses dois irmãos com a sua gente foram os criadores das plantas e
dos animais, e povoaram a Terra com os seus descendentes, tudo neste mundo
pertence ou à metade Kayrú ou à metade Kamé, conhecendo-se a sua descendência
já pelos traços físicos, já pelo temperamento, já pela pintura: tudo o que pertence a
Kayrú é manchado, o que pertence a Kamé é riscado. Essas pinturas, o índio vê
tanto na pele dos animais como nas cascas, nas folhas ou nas flores das plantas, e
para objetivos mágicos e religiosos cada metade emprega material tirado de
preferência de animais e vegetais da mesma pintura.
Kayrú fez cobras, Kamé, onças. Este fez primeiro uma onça e a pintou, depois
Kanyerú fez um veado. Kamé disse à onça: "Come o veado, mas não nos coma!"
Depois ele fez uma anta, ordenando-lhe que comesse gente e bichos. A anta, porém,
não compreendeu a ordem. Kamé repetiu-lhe ainda duas vezes, em vão; depois lhe
disse, zangado: "Vai comer folhas de urtiga! Não prestas para nada!" Kayrú fez
cobras e mandou que elas mordessem homens e animais. Queimou um espinho
chamado sodn e esfregou a cinza nos dentes da cobra a fim de torná-los venenosos.
Kamé quis então fazer um animal muito feroz, e começou a fazer o tamanduá. Eles
estavam trabalhando durante a noite, e quando o dia começou a romper, o tamanduá
ainda não estava pronto: já tinha unhas enormes, mas a boca ainda estava por fazer.
Então Kamé arrancou um cipó e meteu-o como língua na boca do estranho animal,
que ficou mal acabado. Quando já estava claro, eles começaram a correr, e logo
uma onça pegou um Kayrú, e Kamé foi mordido por uma cobra. Pararam para tratar
o doente, quando o surucuá (Trogon sp.) cantou: Tug! Tug! Tug! Um velho
explicou essa cantiga como tu (- carregar) e mandou que carregassem o doente para
o lugar do acampamento. Um pequeno gavião cantou: Tokfín! (- amarrar) e o velho
mandou amarrar o membro lesado. Um outro passarinho cantou: Ngidn! (- cortar), e
eles abriram a ferida com um corte. Outro cantou: Iandyóro! (- espremer) e eles
espremeram a ferida. Por fim, outro cantou: Kaimparará! (kaimpára - inchado), e o
velho disse: "Isto é; um mau grito! Amanhã o membro estará inchado!" Assim
foram tratando o doente até que se restabelecesse.